CHAMADO À SANTIDADE
“Sê bendito, Senhor, porque me criaste!”
Introdução
No chamado à vida, a Revelação sublinha para a pessoa humana um aspecto dinâmico, que é participação até à plenitude da vida em Deus. A experiência cristã chama isto de vocação à santidade. Tal característica é própria da vida cristã, porque a santidade é sempre e somente participação na santidade de Deus, que é o Santo por excelência (cf. Is 6,3). “À imagem do Santo que vos chamou, tornai-vos santos vós também em toda a vossa conduta; porque está escrito: sede santos como eu sou santo” (1Pd 1,15-16; cf. Lv 11,44). Desde o início da vida cristã até o vértice da santidade, segue-se um caminho que é assinalado, não por uma sucessão de instantes, mas se traduz numa duração de contínua tensão para o crescimento da própria existência na autenticidade, que é consequência do esforço ou conversão: colocar em sintonia o si mesmo com o projeto de Deus. De maneira particular, procurar o esvaziamento de toda forma de apego a si para tornar-se total e incondicionada disponibilidade acolhedora da vida, da presença, e da ação divinas.
A vida espiritual cristã. Que culmina na santidade, nasce assim do encontro entre a comunicação da parte de Deus de sua Vida e de seu desígnio, e a recepção ativa de cada criatura, em resposta ao chamado à “divinização” ou “deificação” inscrita na potencialidade do ser a imagem de Deus.
Os santos e santas, nossos modelos, no decorrer dos séculos, repropõem com a genuinidade de novas criaturas a força desta verdade. Tomás de Celano, na carta introdutória à Legenda de Santa Clara, declara: “Não hesitarei em chamar os novos fundadores, com seus seguidores, luz do mundo, indicadores do caminho, mestres de vida”[1]. Tal foi Clara de Assis: alguém que viveu em plenitude o chamado à santidade. Em sua vida, quatro são os momentos que assinalam o seu chamado à santidade e provocam o desabrochar de sua resposta de amor sem reservas: a profecia que teve sua mãe Hortolana; o encontro com Francisco; a vida em São Damião; a sua suprema passagem (páscoa ou trânsito) para a eternidade.
1.A Profecia de uma Clara Luz
Segundo o estilo e a cultura da época, a narrativa de sonhos e de visões tinha uma certa relevância, seja na religiosidade popular, seja no interior dos mosteiros. Não é casual que a visão de Hortolana, grávida de sua primogênita, fosse difundida lema legenda biográfica de Clara, e também pelas Irmãs que testemunham no Processo de Canonização[2]. A narrativa, em resumo, assim expõe: enquanto Hortolana estava grávida, já próxima de dar à luz, rezava diante do Crucificado na igreja, para que fosse salva dos perigos do parto, e ouviu uma voz que lhe disse: “Não temas, senhora, porque sã e salva vais dar ao mundo uma luz que haverá de clarear a própria luz”.
Aqui se revela o chamado divino à santidade, antes mesmo de Clara nascer. Como hoje sabemos, através da psicologia profunda, desde o momento da concepção já se revela à alma da pessoa os desígnios misteriosos que Deus tem para com alguém. O que vem depois é uma cadeira de respostas de generosidade ao chamado primeiro à santidade.
Breves acenos biográficos evidenciam quanto esta semente de graça constituiu o tecido da vocação à santidade de Clara. O Espírito a instruiu desde a primeira infância, conduzindo a sua alma no relacionamento com Deus e tornando-a sensível ao sofrimento dos pobres[3]. O trabalho da graça formou-lhe um coração em plena sintonia com a profunda verdade da divina misericórdia. Como jovem, sente crescer o desejo de agradar mais a Deus com sacrifícios e o gosto pela santa oração, que cultivava assiduamente[4].
2.O Encontro com Francisco
O chamado à santidade de Clara passou através da mediação do chamado á santidade de Francisco. Talvez foi o primeiro fruto fecundo da resposta de Francisco mesmo à sua vocação. Mesmo conservando toda a sua originalidade, cada um dos dois chamados promoveram um ao outro com inédita criatividade, responsabilidade, vínculo, unidade e fecundidade.
De seu encontro com Francisco, Clara deixa a recordação tanto no Testamento como na Forma de Vida. Diz que o Pai celeste iluminou o seu coração mediante a sua graça, para que, segundo o exemplo e os ensinamento de Francisco, fizesse penitência, e juntamente com as suas Irmãs lhe prometeu obediência[5] . Afirma que Francisco, de sua parte, prometeu ter sempre cuidado de cultivar com suas palavras e obras, a sua plantinha[6], as Damas Pobres.
Analisamos aqui um sonho de Clara, que indica em que grau ela prevê a santidade de Francisco. Clara leva a Francisco um vaso com água quente, e uma toalha para enxugar as mãos. Subia por uma escada alta, mas parecia que andava tão levemente, como se andasse por terra plana. E tendo chegado a São Francisco, este tirou de seu seio uma mama e disse a Clara: ‘Vem, recebe e mama’. E tendo ela mamado, ele lhe disse que mamasse outra vez, e quando ela mamava, aquilo que sugava era tão doce e agradável que não sabia explicar. E tendo mamado, o bico do seio ficou em sua boca, e quando ela o tomou na mão, parecia-lhe que fosse ouro tão claro e puro, que ela se via inteira, como se fosse num espelho[7].
Foi uma experiência provavelmente vivida durante o último período de vida de Francisco, hóspede, doente, em São Damião. O gesto de levar água quente e toalha indicam os cuidados de Clara para com ele. Francisco no alto de uma escada fala do posicionamento de Clara com relação a ele, no seu processo de santificação. Ela é a plantinha, cultivada por ele. A escada é o caminho da humildade, que ela, com os símbolos do serviço (vaso de água e toalha) sobe rapidamente até alcançá-lo. Clara suga o peito de Francisco: o aleitamento é a primeira experiência da vida. Para a criança, estar mamando no seio da mãe é continuar a estar unida a ela. O símbolo fala da importância do carinho materno de Francisco para com Clara e as Irmãs. A repetição do gesto é um reforço da experiência. A doçura que Clara experimentava ao mamar é a inefabilidade de encontrar-se diante de algo que supera toda dimensão humana. Clara talvez teve preocupação quanto ao não receber mais o alimento espiritual que Francisco lhes ministrava: o leite representa a nutrição espiritual, a mediação da vida, a Palavra de Deus. A extremidade do seio fica na boca de Clara, e se transforma em ouro tão claro e lúcido que Clara se espelha inteira. A visão parece dizer que Clara encontrou sempre na amizade e no amor de Francisco uma coisa preciosa no seu tender à santidade. Por isso ala quer permanecer “uma” com ele. O seu desejo é o de uma plena identificação com a sua santidade (o ouro como espelho) e com o seu ideal. Ela se espelha nele e se vê a si mesma; quer alcançar a santidade que brilha nele.
3.A Vida em São Damião
As núpcias com Jesus Cristo se consumam para Clara em São Damião. À sua clausura corresponde o amor de Jesus Cristo Pobre e Crucificado. Clara imola a sua vida por quarenta e dois anos na estreita clausura de São Damião, no chamado supremo do amor divino à santidade. Torna-se vida, oferecendo ao Altíssimo as primícias da fecundidade de uma nova geração de santa: são dezoito bem-aventuradas e uma santa ao redor de Clara. Assinala o caminho da santidade para suas seguidoras: é para elas a mentora, a pedagoga, a mestra, a formadora de santas.
O Testamento de Clara percorre alguns traços desta experiência de chamado à santidade. Ali aparece sobretudo a vocação à santidade compartilhada com as Irmãs Pobres de São Damião, entendida como um dom recebido do Pai das misericórdias. É evidente no texto a responsabilidade que a gratuidade que a confiança divina comporta: “Quanto maior e mais perfeita é a nossa vocação, mais a Ele é devida”[8]. Há a preocupação de recomendar a perseverança mais firme e fiel possível em seguir o caminho da santa simplicidade, da humildade e da pobreza[9].
A experiência pessoal da santidade de Clara e das primeiras Irmãs Pobres é realmente um empenho vital de concretização da vida cristã, de seguimento de Jesus Cristo Pobre, Humilde, Crucificado, Rei da Glória. Clara apresenta a vida das Damianitas como “modelo, exemplo e espelho”[10]. São referência para quantas, no tempo e no futuro, seguindo a mesma vocação, se empenharão desejando as mesmas graças e bênçãos. A fidelidade ao carisma recebido é a garantia da continuidade. A qualidade do amor recíproco que Clara pede tona-se o fundamento de sua família religiosa[11]: é necessária coerência interior para com a ação da graça que purifica o coração, cria união, defende a vida nova, conduz à beatitude final. Clara está consciente de que a verificação da autêntica resposta ao chamado à santidade está na correspondência aos dons recebidos de Deus. “Com que solicitude, então, com que selo da mente e do corpo devemos observar o que foi mandado por Deus e por nosso pai Francisco, para restituir o talento multiplicado, com a colaboração do Senhor. Pois o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, exemplo e espelho para os outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação, para que também elas sejam espelho e exemplo para os que vivem no mundo. Portanto, se o Senhor nos chamou a coisas tão elevadas que em nós possam espelhar-se as que deverão ser espelho e exemplo para os outros, estamos bem obrigadas a bendizer e louvar a Deus, dando força ainda maior umas às outras para fazer o bem no Senhor. Por isso, se vivermos de acordo com essa forma, daremos aos outros um nobre exemplo e vamos conquistar a prêmio da bem-aventurança eterna”[12].
A Bula de canonização traça o perfil de santidade de Clara: era peregrina sobre a terra, mas com o espírito já morava no céu; foi um vaso de humildade, arca de castidade, fogo de caridade, doçura de bondade, fortaleza de paciência, mediadora de paz e comunhão de amizade; humilde nas palavras, doce na ação e em tudo amável[13]. Exatamente percorrendo este caminho de resposta ao chamado à santidade, Clara tornou-se luminosa por seus claros méritos. Foi um excelso candelabro de santidade, que refulge na tabernáculo do Senhor[14].
4.A Passagem de Clara ao Céu
Para o chamado à santidade, há uma hora na vida de cada pessoa, capaz de transcender o tempo e o espaço de sua existência, para projetá-la na dimensão nova, em que a qualidade inteira de seu ser é desvelada: é o momento do encontro com a irmã morte. Esta é a hora da glória para quem viveu com intensidade o relacionamento com Deus. Assim foi para Clara. Significativo é o particular revelado por Irmã Angelúcia no Processo de Canonização, que recordou como a morte de Clara foi maravilhosa e gloriosa. Pouco antes, ela começou a falar da Trindade com palavras tão ardentes e inspiradas que não daria para explicar.
O cumprimento do chamado à santidade de Clara se faz esplendor delicado na forte presença do Altíssimo. Dirigindo-se a si mesma ela disse: “parte segura, porque terás boa escolta na viagem. Vai, porque Aquele que te criou, também te santificou e guardando-te como uma mãe guarda o seu filho pequenino, amou-te com terno amor. E Tu, Senhor, sê bendito, porque me criaste!”[15] Vê-se por estas palavras de recomendação de sua alma, quanto Clara estava consciente do seu chamado à santidade: “Aquele que te criou, também te santificou”, e compreende a santidade como um dom de Deus. Além disso, engrandecendo esse Deus que a santificou, glorifica-o dizendo: “Sê bendito porque me criaste”.
Conclusão
O secreto dom de Deus na altíssima dignidade da pessoa humana é a verdade de que é a única criatura capaz de assumir a responsabilidade da própria vida. Quem tem medo de perder a própria vida, não nascerá jamais para a santidade. Querer viver a santidade significa optar por morrer e sacrificar a nós mesmas para querer amar a Verdade posta na raiz de nosso ser.
É a heróica coerência existencial dos santos e santas, de Clara e de Francisco especialmente para nós, e a extraordinária capacidade de clareza e firmeza na decisão, que construíram neles a santidade. Um instinto misterioso, um chamado secreto nos orienta e nos guia a um caminho de luz que, humanamente falando, sempre coincide com a porta estreita e o caminho da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo.
A própria existência é uma escola de santidade, que nos forma, à medida em que estamos atentas às suas lições e pedagogia particulares de formação para a santificação. Aqui a renúncia torna-se afirmação de personalidade, o amor se faz redenção para muitos e a santidade se revela plenitude de comunhão com Deus e com as irmãs e os irmãos. A liberdade de fazer o que Deus chama a fazer, a escolha do bem, a perfeição do querer e do amor, fazem com que estejamos em plena sintonia com a verdade interior e com o chamado à santidade.
Olhar a vida dos santos e santas, das bem-aventuradas de nossa Ordem, especialmente a vida de nossa Fundadora e de nosso Fundador, é como contagiar-se de desejo pela santidade: eles seguiram os passos de nosso Senhor Jesus Cristo com um grande ardor, e somos como que inflamadas a fazer o mesmo e seguir com idêntico ardor. Olhar o exemplo das Irmãs que convivem conosco: seu testemunho, sua doação silenciosa, sua entrega a Deus, sua vida orante; isso faz com que valorizemos profundamente o dom da santidade, e as tomemos como “modelo, exemplo e espelho” para nos apressarmos no caminho da santidade.
É importante também ouvir e viver a Palavra de Deus com empenho sempre renovado, tendo-a como o alimento supremo no caminho que conduz à santidade. As Fontes nos revelam que Clara se nutria da Palavra de Deus e das pregações sábia com um desejo ardente. Tirava toda a força para sua vida continuamente em tensão rumo à santidade; fortalecia-se com esta orientação segura e por ela guiava sua vida, desejosa das coisas de Deus.
É preciso também perseverança em manter firme o empenho inicial de nossa vocação. Recordar-se sempre de nosso propósito primeiro, ter sempre diante dos olhos o nosso ponto de partida; conservar os resultados alcançados, fazer bem o que se faz; não permitir que nem mesmo a poeira retarde o andar; avançar confiante e alegre pelo caminho da bem-aventurança (ou seja, da santidade)[16]. Clara nos indica qual é o seu segredo: olhar, considerar, contemplar e desejar seguir e imitar o Senhor Jesus Cristo[17].
No caminho de santidade penetra no coração da dimensão contemplativa da vida em Deus a profundidade da comunhão eclesial; Clara mesma nos considera, suas filhas, como colaboradoras do próprio Deus e sustento dos membros vacilante ou frágeis de seu Corpo inefável[18]. O santo Padre tem salientado que a vida das claustrais é como que o coração pulsante da Igreja, e que nossa vida de santidade nos coloca no centro da vida eclesial.
A santificação é, para Clara, uma crescente identificação com o Amado, numa existência dispendida em aderir com todas as fibras do coração a Ele, que se deu inteiro por nosso amor. Ele é o Espelho onde a Clarissa continuamente se espelha, para conferir em que grau cresce na identificação com os traços de Jesus Cristo Pobre, Humilde, Crucificado, Rei da Glória. Ela vive, assim, em plena profundidade a identificação com o seu mistério pascal, desde a pobreza do presépio, passando pelas fadigas de sua vida dada pela redenção da humanidade, até o vértice de sua doação na morte de cruz, e a ressurreição e a glória junto ao Pai.
O caminho da santidade é uma caminhada rumo à constante resposta a um chamado divino. É um itinerário ao qual nenhuma Clarissa pode dizer de não se sentir capaz. Conosco está, antes de tudo, a graça divina e o chamado que convoca continuamente. Nossa vida de entrega convida continuamente à santidade. No seguimento concreto de Jesus Cristo, no serviço a Ele e diretamente às Irmãs, oferecendo ao Senhor a renúncia de tudo por amor, com nosso ser feminino, caminhamos rumo à santidade, com um sentido de enamoramento por Jesus Cristo, cujo amor nos faz castas, puras e belas[19]. Este divino esposo é aquele que abraçou a senhora Pobreza, bem-aventurada, santa e piedosa, preferindo-a sobre todas as outras coisas, e querendo aparecer no mundo desprezível, necessitado e pobre, para que nós nos tornássemos ricas com a posse dos bens celestes[20].
Um outro aspecto do chamado à santidade é o discipulado com Maria: precisamos aprender com ela como fazer o seguimento de seu Filho Jesus Cristo; sobretudo, somos chamadas por Clara a aprender com ela a gerar Jesus Cristo, nos tornarmos suas “mães”, sua morada e sede; deixar espaço para a inabitação de Deus em nosso ser, e para que Ele nos plasme na santificação, que é o seu projeto de amor, idealizado sobre a nossa vocação, desde o seio materno.
Por tudo isso, podemos perceber que o chamado à santidade é uma força dinâmica que envolve a Clarissa em todas as dimensões de sua vida. E encontramos em Clara o primeiro “modelo, exemplo e espelho”, que nos convida a seguir o caminho das pegadas de nosso senhor Jesus Cristo.
Irmã Sandra Maria, Clarissa